domingo, 2 de agosto de 2009

Divergência & harmonia

do Blog do Noblat

Enviado por Antonio Carlos Pannunzio - 2.8.2009 | 14h01m

artigo
Divergência & harmonia

Há quem imagine que a consolidação da democracia, num país ou num continente, se faz num clima de pleno e constante entendimento dos poderes do Estado. A essa concepção idílica do quotidiano opõem-se os incessantes embates entre as forças políticas que operam no regime democrático. É em meio a tais entrechoques que o vigor dos ideais democráticos de governantes, lideranças políticas e partidos é posto à prova e revalidado continuadamente.

À luz dessa dinâmica deve-se entender o preceito inscrito em nossa Constituição, segundo o qual os poderes da União são independentes e harmônicos entre si.

Independência supõe que, nas permanentes relações entre o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, inexiste subordinação de algum deles aos demais.O texto deixa explícita a possibilidade de cada um tomar as decisões que lhe competem com plena liberdade, mesmo que isso implique divergir dos demais.

As divergências, entretanto, não podem subsistir por tempo indeterminado. Os poderes devem tender à harmonia, sem a qual o próprio conceito de União se esfacela. A Constituição estipula, pois, os meios e modos pelos quais as discordâncias se compõem e os desentendimentos são superados.Complicam-se as coisas quando um dos poderes tenta reduzir os demais à condição de acólitos, para usarmos a expressão do jurista Ives Grande ao tipificar a situação da Venezuela.

Ali, o presidente Chávez empenha-se em concentrar as decisões de toda sorte nas mãos do Executivo, legitimando-as através de sucessivos referendos. Isso resulta, na prática, numa estrutura política diferente, em que se têm, de um lado, dois poderes – o Presidente e o Povo – e dois órgãos com funções meramente coadjuvantes, o Legislativo e o Judiciário, despojados de sua independência e sem condições de atuar em real harmonia com um Executivo que tem pouco de institucional e muito de pessoal.

Tão desastrosa quanto a submissão ao Executivo dos demais poderes é a ruptura da harmonia entre eles, observável na origem do golpe de Estado que depôs o presidente de Honduras, Manoel Zelaya. Os hondurenhos conviveram, no século XX, com setenta anos de ditaduras intermitentes só chegando a um período de governo constitucional a partir de 1982.

Nas eleições que ali vem se realizando a cada quatro anos, o poder tem se alternado entre dois partidos conservadores, o Nacional e o Liberal.Zelaya, eleito por este, em 2005, com a promessa de executar uma plataforma de centro direita, na Presidência guinou à esquerda, aderiu à Alba (Alternativa Bolivariana das Américas), criada por Hugo Chávez e, a poucos meses da eleição de seu sucessor, passou a reclamar a realização de um plebiscito que, alterando a Constituição, permitisse a ele disputar um segundo mandato.

Essas mudanças imprevisíveis abalaram a harmonia entre os poderes, colocando-o em rota de colisão com a Assembléia Nacional, a Corte Suprema e o Exército, ao qual coube a tarefa de afastá-lo da presidência. As negociações para reconduzi-lo ao poder, mesmo com a inclusão de uma cláusula em que ele desiste expressamente dos artifícios que lhe permitiriam obter um segundo mandato, têm esbarrado em fortes resistências.

Um golpe de Estado é sempre censurável. O que não se pode ignorar é que, no caso hondurenho, o golpe foi uma reação ao abandono, pelo presidente, da linha política que se propusera a seguir, ao caráter nebuloso da consulta ao eleitorado e ao momento inadequado em que apresentou a proposta da reeleição. Tudo isso somado, pôs em xeque a harmonia dos poderes. Nada disso justifica sua deposição. Ajuda, entretanto, a entender porque ocorreu.

Antonio Carlos Pannunzio é deputado federal pelo PSDB/SP, membro da Comissão de Constituição e Justiça, especializado em relações exteriores e defesa nacional.

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