sábado, 8 de agosto de 2009

Agenda de um senador em estágio de decomposição

Por comiseração, ninguém disse em voz alta, mas o Sarney virou um cadáver político. Refugiara-se nas brumas do recesso certo de que a fornalha da crise esfriaria. A encrenca não tirou férias, contudo. Continuou crepitando nas manchetes. A presidência de Sarney, que já não cheirava bem, entrou em estado de putrefação.

Político de sete fôlegos, Sarney não é um defunto estreante. Fenecera outras vezes. Como nas vezes anteriores, a morte lhe chega pontualmente, na hora incerta. Sarney parecia condenado a uma posteridade bem superior à que merecera em vida. Se houvesse se dado conta do momento, Sarney teria economizado muito tempo.

Imaginou que poderia refazer a sua hora. Vê-se agora compelido a cuidar dos minutos. Em vez de ponteiros, o relógio de Sarney tem espadas. Para ele, o tempo não passa. Já passou. Envolto em anormalidade, Sarney condenou-se a uma agenda de paranormal. Nos próximos dias, sua rotina deve ser assim:

6h- Sobre o criado-mudo, o despertador grita mais alto do que os soníferos que Sarney tomara na noite da véspera.

6h10- Sarney deixa-se ficar sobre a cama. Deleita-se com a idéia de que a morte é uma das poucas coisas que se pode fazer deitado.

6h15- Sarney entrega-se a reflexões lúgubres. Sempre acreditara na vida eterna. Só não dispunha do endereço. Imaginara que passasse pela presidência no Senado. Ilusão.

6h30- Após relutância de meia hora, Sarney se levanta do túmulo de sua mediocridade existencial.

6h35- Sarney tateia a parede. Procura o interruptor. Não é fácil achar o botão da luz depois de morto. Arrasta os chinelos até o banheiro.

6h40- Sarney faz xixi.

6h45- Sarney se olha no espelho. Dá de cara com a crise. É diante do testemunho irrefutável do reflexo que Sarney é mais profundamente Sarney. Ele diz para sua imagem: Eu não estava farto da vida. Ela é que se fartou de mim.

7h- Sarney veste seu terno de vidro.

7h30- Sarney vai à mesa do café. Aguarda-o uma solitária tigela de inhame. Assusta-se com a aparência fálica do tubérculo. Refuga-o. Opta por jejuar.

8h- O motorista do Senado chega. Exige que Sarney vá no banco da frente.

8h10- O rádio do carro oficial cospe na cara de Sarney o penúltimo grampo vazado do inquérito da PF. O chofer aumenta o volume.

8h30- Sarney chega ao Senado. Da porta de entrada ao elevador de autoridades, percorre 75 metros de repórteres. Vai renunciar? Sorri um riso de Monalisa. E silencia.

8h40- O ascensorista sonega o bom-dia ao senador-zumbi. Cenho crispado, ele mente para Sarney: “O elevador está enguiçado”.

8h50- Pelas escadas, Sarney alcança o Salão Azul do Senado. Arrasta atrás de si uma fieira de jornalistas. Toma o rumo do gabinete. Tropeça num dos escândalos mal escondidos sob o tapete fofo. Cai. Ouvem-se risos. Levanta. Mais risos.

8h55- Sarney chega à sala da presidência. Com o bico do sapato de cromo alemão, afasta o lixo que se acumula na frente da porta. Entra.

9h- Sarney pede à secretária que lhe providencie um cafezinho.

9h10- Sarney folheia os jornais do dia. Pula as primeiras páginas. Salta os cadernos de política. Passa batido pelos obituários. Estaciona o olhar nos classificados de empregos.

9h40- Sarney recolhe um maço de papéis sobre a mesa. Rosna para a cópia da nota em que o Mercadante pedira que se afastasse. Festeja um convite para paraninfo da formatura da primeira turma de ensino à distância da faculdade da família do suplente Wellington Salgado.

10h- Sarney recebe a visita de Renan Calheiros, cuja companhia tornou-se o pior tipo de solidão. Eles passam em revista a conjuntura. Renan conclui: Durante o recesso, o complô da mídia fez barba, cabelo e bigode. Sem trocadilho.

10h30- Sarney discute com Renan a estratégia para abater em pleno vôo as 11 denúncias protocoladas no Conselho de (a)Ética.

11h- Trancado em seus rancores, Sarney desperdiça o tempo vago dedilhando no computador trechos do novo romance que decidiu escrever: Moribundo de Fogo (com trocadilho, por favor).

14h- Sarney ouve pelo serviço de som a voz que vem do plenário: “Está aberta a sessão”. Só então se dá conta de que, entretido com o romance, esquecera-se de almoçar. Dá de ombros. A ruminação das amarguras o saciara.

14h10- Improvisado na presidência da sessão, Mão Santa anuncia o primeiro orador da tarde. Da tribuna, Pedro Simon reitera o pedido de renúncia do presidente. Sarney sobe pelas paredes. Ao bater no teto, arranca a caixa que derrama o som do plenário em sua sala.

15h- Envolto em silêncio ensurdecedor, Sarney priva seus tímpanos do segundo discurso do dia. Eduardo Suplicy ecoa a nota de Mercadante: O afastamento voluntário seria um gesto de grand... Do microfone de apartes, Jarbas Vasconcelos atalha o colega: Não se deve esperar grandeza de quem se rendeu à baixeza.

16h- A secretária avisa Sarney sobre a chegada da comitiva de suplentes de vereadores que viera de Macapá para lhe hipotecar apoio. Mande entrar os 15, ele ordena, sôfrego. E a secretária: Só veio um. Sarney cancela a audiência. Alega que precisa conduzir as votações em plenário.

16h15- Sarney chega ao plenário. Mão Santa lhe cede a cadeira. Presentes apenas meia dúzia de gatos pingados. Sarney anuncia que, por evidente falta de quorum, as votações ficam adiadas.

16h20- Sarney devolve a cadeira a Mão Santa. Antes de deixar o plenário ouve o início de um discurso desaforado de Arthur Virgílio. Faz ouvidos moucos. E resmunga para si mesmo: Roto, grande *#~§¢%¬.

16h30- Sarney refugia-se, de novo, na casamata da presidência.

17h- Com oito horas de atraso, o garçom serve a Sarney o cafezinho que ele encomendara, pela manhã, à secretária. Sarney leva a xícara aos lábios. O café está gelado.

18h- Entre abespinhado e desacorçoado, Sarney decide voltar para casa. Salão Azul, escadas, porta de saída...

18h15- Sarney procura o carro oficial. E nada. O porteiro informa que seu motorista fora buscar a mulher no cabeleireiro. Oferece ao pseudopresidente um Fiat Mille do Senado. Sarney se dá conta de que, antes mesmo de renunciar, foi renunciado.

18h20- Sarney decide tomar um táxi. Leva a mão direita ao rosto. Tenta esconder o bigode. O taxista reconhece o inconfundível. E estranha o gesto: É dor de dente, presidente? E Sarney, lacônico: Hum, hum...

Escrito por Josias de Souza às 15h25

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